As vistas de Ricardo Tadeu Marques da Fonseca se escureceram
definitivamente quando ele tinha 23 anos. Cursava, então, o terceiro ano de
Direito na tradicional Faculdade do Largo São Francisco, na Universidade de São
Paulo (USP). Com o apoio de colegas – que gravavam em fitas cassete a leitura
dos livros, para que ele pudesse estudar –, Fonseca se formou com louvor. Seria
apenas mais um capítulo da história de superação, estoicismo e trabalho. Pouco
mais de duas décadas depois, ele se tornava o primeiro juiz cego do Brasil.
Fonseca foi nomeado desembargador do Tribunal Regional do
Trabalho do Paraná (TRT-PR) em 2009, indicado pelo então presidente Lula (PT).
Com perfil sério e decidido de quem teve que brigar para vencer as
adversidades, imprimiu seu ritmo de trabalho à equipe. Em quatro anos, zerou a
fila de mais de mil processos que aguardavam julgamento. Analisa, em média, 400
casos por mês. “Aqui, o trabalho se impôs”, ressalta.
Para suprir a falta da visão, teve de se adaptar e criar um
método próprio. Em sala, uma assessora lê os autos em voz alta. A partir de
então, Fonseca memoriza o caso, destacando palavras-chave. No tribunal, a
servidora menciona as palavras-chave e pronto: o processo brota na mente do
desembargador que, então, pode dar andamento ao julgamento. “Ela é meu olho nas
sessões”, sintetiza.
Desta forma, o desembargador se consolidou avesso a qualquer
sentimento de pena ou de incapacidade. “Eu sempre quis ser juiz e nunca
acreditei que não iria conseguir”, diz. Menciona outros grandes que superaram
deficiências – como Beethoven (que compôs a nona sinfonia depois de surdo), o
escultor Aleijadinho e o físico Stephen Hawking. “Não existe o ‘não pode’. Tudo
é método. É questão de se encontrar o método adequado para fazer o que se
quer.”
As dificuldades, no entanto, começaram já nos primeiros
instantes de vida. Fonseca veio ao mundo prematuramente – aos 6 meses de
gestação. Por isso, nasceu com retinopatia da prematuridade, doença que lhe
deixou com baixíssima visão. Enxergava apenas borrões coloridos, sem contornos
nem detalhes. “Eu não distinguia rostos ou flores. Tinha uma visão
impressionista”, define.
Filho de um executivo de multinacional e de dona-de-casa,
Fonseca teve as primeiras lições ainda em casa. Em meio a brincadeiras, a mãe o
ensinou a ler e a fazer as primeiras contas, grafando grandes letras e números
em uma lousa. Quando veio a idade escolar, a família optou por matriculá-lo em
um colégio normal, e não em escola especial.
Como não conseguia ler os livros, as professoras copiavam a
matéria em letras maiores. “Foi um esforço maravilhoso da minha mãe, que nunca
me deixou pensar que eu era incapaz, que eu não podia. Eu sempre pude”,
observa.
Da rejeição à carreira no MPT do Paraná
Em 1990, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca foi aprovado em um
concurso para ocupar uma vaga de juiz no Tribunal Regional de São Paulo
(TRT-SP), então presidido por Nicolau dos Santos Neto, o “Lalau”. Foi
desclassificado por não enxergar. “Alegavam que um cego não poderia ser juiz.
Aquilo me bateu forte, porque eu não esperava algo semelhante da Justiça”,
disse.
Depois de uma semana sem dormir, deu o caso por sepultado.
Voltou aos estudos e, no ano seguinte, foi aprovado em sexto lugar em um
concurso para o Ministério Público do Trabalho (MPT) – do qual participaram
mais de 4,5 mil candidatos. Em 18 anos na instituição, trilhou uma carreira
destacada, primeiro como promotor, depois como procurador.
Deu de ombros à sua condição e foi à campo. Participou de
vistorias, fiscalizações e investigações. Em uma delas, ele e sua equipe
fizeram campana em uma fazenda que mantinha 37 mil trabalhadores, no interior
paulista. Descobriram que os lavradores eram pulverizados com agrotóxicos antes
de entrarem nos pomares de laranja.
“Eu mesmo tomei banho de veneno para comprovar que aquilo
afetava a pele dos trabalhadores”, conta. “Eu nem lembrava que era cego. Eu era
só um procurador atuante, querendo fazer meu trabalho da melhor forma
possível”, acrescenta.
Fonseca promoveu incontáveis audiência públicas na região de
Campinas, São Paulo, orientando empresas quanto aos menores-aprendizes. “Eu
consegui fazer com que se registrassem dez mil ‘guardinhas mirins’, em
contratos formais de aprendizagem”, aponta. Esta atuação virou referência para
a lei federal 10.097, a lei da aprendizagem.
Em 2006, foi convidado a integrar o grupo que redigiu a
convenção internacional sobre o direito da pessoa com deficiência, da
Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque. Refuta o rótulo de
“defensor dos deficientes”. Diz defender todas as minorias. “Ser cego é um
atributo, não uma incapacidade. A deficiência não está na pessoa. Está na
sociedade que não dá condições a essa pessoa de fruir seus direitos”, afirma.
Fonte: gazetadopovo.com.br